A impossibilidade: conservador nos costumes e liberal na economia
O conservador moderno, ao aceitar a separação da Igreja e do Estado, a neutralidade religiosa, a liberdade de culto e o pluralismo moral, já está ideologicamente submetido ao liberalismo.
Diogo Bronze
7/31/20259 min read


I. O conservadorismo como forma de liberalismo
O conservadorismo moderno nasceu como reação às fases mais violentas da Revolução Francesa, mas não rejeitou os seus princípios fundadores. Pelo contrário, passou a atuar como uma força moderadora dentro do sistema revolucionário, aceitando a ordem política pós-cristã enquanto tenta preservar restos culturais da civilização antiga. O historiador Christopher Dawson, na sua obra The Making of Europe, mostra como a cristandade medieval era uma unidade orgânica de fé, cultura, política e economia. O mundo moderno, desde o Iluminismo, separou todos esses elementos.
O conservador moderno, ao aceitar esta cisão (fé como esfera privada, economia como esfera amoral, política como gestão de interesses), já opera dentro da lógica liberal. O conservadorismo laico, ao recusar a realeza social de Cristo, já não se apoia numa verdade absoluta, mas sim numa "tradição cultural" abstrata e mutável. Trata-se, portanto, de um relativismo travestido de nostalgia. O Papa Leão XIII, em Immortale Dei (1885), rejeita essa neutralidade: “É um erro gravíssimo não querer que a autoridade civil preste culto a Deus ou que se constitua segundo as prescrições da verdadeira religião.”
O conservador moderno, ao aceitar a separação da Igreja e do Estado, a neutralidade religiosa, a liberdade de culto e o pluralismo moral, já está ideologicamente submetido ao liberalismo. Ele tenta preservar frutos (valores) que só podem nascer de raízes (doutrina e instituição) que ele próprio já abandonou.
II. O liberalismo como erro condenado
O liberalismo tal como o capitalismo e comunismo, foram condenado pela Igreja de forma sistemática durante o século XIX e início do século XX, especialmente porque colocaram o homem no lugar de Deus, promoveram o individualismo e afastaram a sociedade civil da sua fonte divina de ordem. Trata-se de um erro teológico, filosófico, político e económico.
Na encíclica Syllabus Errorum (1864), o Papa Pio IX lista entre os erros modernos: “A liberdade de consciência e de cultos é um direito de todo o homem.” “A Igreja deve estar separada do Estado.” Esses princípios são a base do liberalismo. E qualquer ideologia que os aceite, mesmo que “modere” seus efeitos, permanece dentro do erro. O liberalismo também assume que o homem é um ser auto-suficiente, cuja liberdade é absoluta. Mas a liberdade sem verdade é destrutiva, como ensina João Paulo II em Veritatis Splendor (1993): “Separada da verdade, a liberdade torna-se arbitrariedade e conduz à escravidão dos instintos.”
Na economia, o liberalismo toma a forma do laissez-faire, que idolatra o mercado como autorregulador e recusa qualquer interferência moral ou religiosa nas relações económicas. Esse sistema, promovido por Adam Smith e pelos fisiocratas, nega o princípio da justiça distributiva e transforma o trabalho humana, criado à imagem de Deus, num simples fator de produção. Isto é inaceitável. O Papa Bento XVI, em Caritas in Veritate (2009), é claro: “O mercado não pode ser o lugar onde o forte domina o fraco, e o lucro o critério último. [...] A economia precisa de uma moral que seja coerente com a dignidade da pessoa humana.”
III. A unidade moral da sociedade: economia e costumes não podem ser separados
O erro mais frequente entre os chamados “liberais-conservadores” é considerar que a economia é um domínio técnico, neutro, separado da moral e da religião. Este erro decorre do iluminismo, que dividiu artificialmente as esferas da vida humana: política, economia, fé, cultura, família. Contudo, a realidade é una. O homem é uno. E as suas ações económicas fazem parte da sua vida moral.
Comprar, vender, investir, contratar, pagar salários: tudo isso tem peso moral e espiritual. São Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 77, a. 1: “A justiça exige que os bens materiais sejam usados segundo a razão e a caridade. Aqueles que manipulam os bens fora desta ordem cometem pecado.” O liberalismo económico, ao recusar essa regulação, corrompe os costumes. É impossível defender o “conservadorismo moral” num ambiente de mercado que promove o hedonismo, a fragmentação familiar, a pornografia, a degradação do trabalho, a mobilidade forçada, e a destruição do domingo.
O sistema económico liberal necessita de consumidores atomizados e disponíveis, o que é incompatível com famílias estáveis, numerosas, com mães em casa, com raízes locais, com autoridade paterna e valores espirituais superiores ao lucro. O cardeal Pie, de Poitiers, escreveu: “A economia liberal conduz inevitavelmente à dissolução moral. Pois o dinheiro, tornado deus, exige sacrifícios humanos: crianças abandonadas, velhos desprezados, famílias destruídas.”
IV. A Doutrina Social da Igreja rejeita o dualismo liberal
A Doutrina Social da Igreja é uma resposta integral à desordem do mundo moderno. Ela parte de uma premissa fundamental: a sociedade humana tem um fim sobrenatural e não pode ser reduzida a relações de interesse material. Toda a ordem social, política e económica deve estar subordinada a este fim último: Deus.
A Igreja não defende o estatismo marxista nem o liberalismo capitalista. Ela condena ambos por razões distintas, mas coerentes: um nega a liberdade e a propriedade; o outro nega a justiça e a caridade. Quadragesimo Anno, §46: “Nem o socialismo pode ser reconciliado com os ensinamentos católicos, nem o capitalismo desenfreado pode ser aceito.” A Doutrina Social da Igreja propõe: Justiça distributiva, que regula a distribuição dos bens com equidade. Subsidiariedade, que impede a centralização abusiva do Estado ou das corporações. Salário justo, como um direito natural do trabalhador. Propriedade com função social, e não como bem absoluto.
Trata-se, portanto, de uma ordem baseada na caridade política, na comunidade orgânica, e na virtude cristã. Isso é o oposto do mercado liberal, onde a concorrência é o motor e o lucro é o fim.
V. O erro prático do liberal-conservadorismo
No plano prático, o liberalismo económico destrói os próprios alicerces dos valores que os “conservadores” afirmam defender. Ele impede: Que a mãe permaneça em casa com os filhos. Que o pai tenha um emprego digno e estável. Que os filhos cresçam num lar estruturado. Que a paróquia tenha centralidade na vida local. Que os valores não sejam constantemente minados pela cultura de massas, que é, por definição, uma criação do capitalismo liberal.
A propaganda moderna, de Hollywood, das Big Techs, dos bancos internacionais, da moda, da indústria farmacêutica, da publicidade, não é socialista. Ela é essencialmente capitalista, orientada por interesses de mercado, mas com efeitos anti-cristãos profundos. O Papa Francisco, mesmo vindo de uma teologia duvidosa em vários pontos, é certeiro ao dizer: “Esta economia mata.” (Evangelii Gaudium, §53) Não se trata de uma questão de moderação.
Trata-se de uma escolha de civilização. Ou aceitamos a ordem liberal moderna, e com ela o individualismo, o relativismo e a degradação, ou lutamos pela restauração integral da Cristandade.
Solução
O único caminho é a restauração integral da ordem cristã A tentativa de conciliar o que não é conciliável, costumes cristãos e economia liberal, é a razão da falência política da chamada “direita” moderna. Só a restauração da soberania de Cristo sobre todos os aspectos da vida social pode oferecer uma resposta verdadeira.
Papa Pio XI, Quas Primas (1925): “A paz de Cristo só virá pelo reinado de Cristo.” Este reinado não é apenas espiritual e interior, mas também social, político e económico. A Igreja, enquanto Corpo Místico de Cristo, deve orientar os povos, através da lei natural, da graça e da verdade revelada, para a verdadeira ordem, que é a Cristandade.
A economia deve ser regida pelos princípios da moral e da caridade. A propriedade deve ser repartida de modo a favorecer a vida familiar. A cultura deve florescer sob a luz da fé. E a política deve ser orientada para o bem comum e não para o interesse de lobbies financeiros.
A Terceira Via, Dez Séculos que ainda subsistem no inconsciente da população Europeia
A necessidade de uma terceira via: a Ordem Social Cristã como alternativa ao liberalismo e ao socialismo.
A Igreja, diante da desordem moderna, sempre rejeitou os dois grandes erros económicos do mundo moderno: o liberalismo capitalista, que exalta a liberdade individual e o lucro como fim último da economia, e o socialismo/comunismo, que destrói a propriedade privada, nega a liberdade pessoal e submete tudo ao Estado. Ambos partilham um mesmo erro de base: o materialismo. Ambos colocam o centro da sociedade no bem-estar material, no progresso técnico e na satisfação das necessidades corpóreas, recusando que a vida humana tenha um fim sobrenatural.
Papa Pio XI, Quadragesimo Anno, §120: “Entre os dois extremos condenados, o individualismo e o coletivismo, a Igreja mostra o caminho seguro do justo meio, a saber: a ordem social cristã.” A Igreja propõe, portanto, uma terceira via: uma ordem social, económica e política que: Respeita a dignidade da pessoa humana criada à imagem de Deus; Subordina a economia à moral e ao bem comum; Defende a propriedade privada com função social; Rejeita tanto o monopólio capitalista como a estatização socialista; Valoriza a vida familiar, local e comunitária, protegendo-a dos abusos do capital e do Estado; Baseia-se na caridade cristã, na justiça distributiva e na solidariedade orgânica entre classes e corpos sociais.
Esta é a Ordem Social Cristã, também conhecida por nomes como: Cristandade (no seu sentido tradicional e integral); Distributismo (na versão proposta por Chesterton e Belloc); Corporativismo orgânico católico (tal como defendido em certos círculos neoescolásticos); Integralismo católico, que propõe a realeza social de Cristo sobre todas as esferas da vida.
Populorum Progressio, Paulo VI, §42: “O desenvolvimento exige mudanças ousadas, profundas, urgentes: passar de situações menos humanas para situações mais humanas. [...] Mas o desenvolvimento integral é impossível sem o desenvolvimento espiritual.”
Este caminho não é uma utopia nem uma nostalgia vazia: é um chamado real, histórico e teológico, à reconstrução da sociedade segundo os princípios perenes da lei natural e da Revelação. Ele requer uma verdadeira conversão social, com renovação das instituições, das estruturas económicas e da vida familiar à luz do Evangelho e da Tradição. Trata-se, pois, de uma alternativa concreta e coerente, que recusa os dois extremos da modernidade, liberalismo e socialismo, e aponta para a única sociedade realmente justa: aquela que se organiza segundo a soberania social de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Estes documentos são leitura obrigatória para qualquer católico que queira entender a visão integral da Igreja sobre economia, sociedade e moral:
Rerum Novarum – Leão XIII (1891) A primeira grande encíclica social da Igreja. Condena os abusos do capitalismo e do socialismo, defende o direito à propriedade, o salário justo, a dignidade do trabalho e o papel do Estado.
Quadragesimo Anno – Pio XI (1931) Comemora os 40 anos da Rerum Novarum. Desenvolve a crítica ao liberalismo económico, introduz o princípio da subsidiariedade e propõe uma renovação cristã da ordem económica e social.
Divini Redemptoris – Pio XI (1937) Condenação doutrinária do comunismo ateu, mas também com fortes críticas ao capitalismo liberal. Reafirma a necessidade de uma ordem cristã na economia.
Mater et Magistra – João XXIII (1961) Atualiza os princípios da doutrina social à realidade do pós-guerra. Reforça a crítica à economia desenfreada e ao materialismo.
Populorum Progressio – Paulo VI (1967) Aponta os desequilíbrios do desenvolvimento económico global. Afirma que “o desenvolvimento é o novo nome da paz” e que ele deve ser integral: humano e cristão.
Laborem Exercens – João Paulo II (1981) Uma das mais belas exposições sobre a dignidade do trabalho humano. Opõe-se a todas as formas de exploração do homem, tanto no comunismo como no capitalismo.
Centesimus Annus – João Paulo II (1991) Reflexão sobre o colapso do comunismo. Afirma os valores positivos da economia de mercado com forte ênfase ética, deixando claro que o capitalismo é aceitável apenas se for orientado para o bem comum.
Caritas in Veritate – Bento XVI (2009) Crítica intensa ao economicismo tecnocrático e à financeirização do mundo. Propõe uma economia baseada na verdade e na caridade, não na lógica da maximização do lucro.
Livros de autores católicos sobre economia, política e sociedade
Estes livros ajudam a aprofundar a crítica católica ao liberalismo e a compreender os fundamentos de uma ordem social cristã.
Revolução e Contra-Revolução – Plinio Corrêa de Oliveira Clássico do pensamento contra-revolucionário. Mostra como a modernidade é um processo revolucionário em etapas, e como o liberalismo e o socialismo fazem parte da mesma matriz destrutiva.
A Heresia do Século XX – Jean Ousset Mostra como o liberalismo é a heresia dominante do mundo moderno e como ela contamina até os ambientes católicos. Excelente obra para compreender a relação entre política, moral e fé.
The Church and the Libertarian – Christopher A. Ferrara Refutação detalhada do liberalismo económico a partir da doutrina católica. Ferrara expõe como o libertarianismo é incompatível com a moral católica.
Catholicism, Protestantism, and Capitalism – Amintore Fanfani Obra fundamental para entender a relação histórica e doutrinária entre o protestantismo e o capitalismo, e porque o catolicismo tradicional é antitético ao espírito do capitalismo moderno.
Distributism: A Manifesto – G. K. Chesterton e Hilaire Belloc (vários textos) Os dois grandes autores do distributismo católico mostram porque nem o capitalismo nem o socialismo são aceitáveis, e propõem uma alternativa enraizada na tradição cristã, na pequena propriedade, e na subsidiariedade.
Liberté, Laïcité, Catholicisme – Henri Delassus Exploração profunda da revolução liberal e sua infiltração na sociedade moderna. Um dos melhores autores tradicionalistas do século XIX.
La Cité Catholique – Jean Ousset Um projeto político e social para a restauração da civilização cristã. O autor propõe soluções concretas e princípios doutrinais firmes para reorganizar a sociedade sob Cristo Rei.
Leitura complementar e histórica:
O Capitalismo como Religião – E. Michael Jones (vários textos e vídeos) Expõe como o capitalismo liberal assumiu traços quase religiosos, destruindo a cultura católica.
A Economia Cristã – Antonin Sertillanges Obra curta e clássica sobre os fundamentos filosófico-teológicos da economia orientada pela moral cristã.
O Liberalismo é Pecado – Félix Sardà y Salvany Obra curta, mas fulminante. Escrita no século XIX, expõe com clareza por que o liberalismo (em qualquer das suas formas) é incompatível com a fé católica.
Um grande abraço.
Diogo Bronze
info@bronzepodcast.com